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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Mercado renega a política, mas milita

Por Maria Inês Nassif, em "O Valor" de hoje

A política morreu. Viva a política. O ano de 2007, apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo governo e do desgaste amargado pelos partidos políticos e pelo Legislativo, pode se orgulhar de ser aquele onde a política ousou desafiar o "consenso" contra o qual ela se debateu internacionalmente nas últimas duas décadas - o de que ela é ruim e deve negar a si própria para ter alguma virtude. Em nome da racionalidade, chegou-se a defender com enorme convicção (e esse "chegou-se" inclui muita gente) que as decisões de governo fossem cada vez mais descoladas da política e substituídas, sempre que possível, por automatismos técnicos a cargo de uma burocracia racional - esta sim, imunizada contra pressões e interesses de políticos eleitos por um povo ignorante e pouco informado, ele próprio mais interessado em suas necessidades imediatas do que no futuro do país.

Foi preciso uma grande crise política, a do mensalão, em 2005, para que o governo de um partido à esquerda do espectro político fugisse da timidez de contrariar o modelito da racionalidade imposto principalmente nos governos FHC. Não foi apenas timidez, aliás: no primeiro mandato, a opção de Lula foi mexer o menos possível num país que estava na corda bamba, frágil o suficiente para quebrar ao primeiro movimento especulativo. A promessa de "manter os contratos" feita pela Carta ao Povo Brasileiro, aprovada pelo PT antes das eleições de 2002, era um pacote que incluía manter a Lei de Responsabilidade Fiscal, a independência do Banco Central - senão de direito, ao menos de fato -, o câmbio flutuante (sem interferência sequer da autoridade monetária independente) e um vigoroso superávit fiscal. O primeiro ministro da Fazenda, Antonio Palocci, tomou a ferro e fogo e gostou da fórmula. Foi dando certo. E foi ficando.

A crise política lembrou ao governo e ao PT que nem a autonomia burocrática de parte da máquina governamental, destinada a manter pressupostos exigidos pelo mercado, é inocente. Ela é complementar à ideologia que nega a legitimidade das decisões de um governo eleito (e a negação foi orquestrada pelos próprios eleitos na última década). E, no limite, essa ideologia, é essencialmente antidemocrática.

No livro "Tudo à venda" (1996), o norte-americano Robert Kuttner, ao analisar a perturbadora adesão - inclusive de presidentes democratas dos EUA - ao pré-conceito de que quanto mais governo, pior, aglutina num único bloco de pensamento antidemocrático a teoria da Escolha Pública e a da Escolha Racional (e trata ambas por Escolha Pública). Elas são uma transposição radical do liberalismo econômico para o mundo da política e são quase totalmente montadas em torno de silogismos que decorrem da crença incondicional de que o mercado tem o dom de corrigir suas próprias falhas - e por isso dificilmente falha. Ao historiar a construção dessas teorias, Kuttner acaba expondo o tamanho da armadilha política em que caíram os países e governos que assumiram acriticamente o neoliberalismo como verdade indiscutível, como "racionalidade".

A primeira premissa da Escolha Pública é a de que as mesmas razões que tornam o mercado virtuoso desqualificam a política. Se o homem maximiza o comportamento auto-interessado na economia, faz o mesmo na política. A escolha democrática é mais imperfeita do que o consumo: o mesmo cidadão que se informa e compra no mercado o melhor, tem informações imperfeitas para escolher os seus representantes - o eleitor médio é, em princípio, incapaz de separar o bom político do ruim. Nem eleitores, nem políticos, aliás, estariam interessados no bem comum, já que a lógica é que cada um defenda o seu próprio interesse. Se a concorrência, na economia, regula o mercado, é ela que corrompe a política.

Como os políticos são movidos por interesses próprios, o processo legislativo tem grandes possibilidades de não expressar o que de fato a maioria quer, assim como tem pouquíssimas chances de ter racionalidade, segundo a Escolha Pública. Assim, os tribunais não apenas têm legitimidade para desautorizar legisladores, como devem fazê-lo. Num regime democrático, convivem a conveniente liberdade do mercado e a inconveniente submissão do cidadão (e do mercado) a um governo das maiorias, que por esta ótica nada mais é do que a soma de interesses individuais inconfessáveis, difusos e pouco inteligentes.

A generalização feita acima pode parecer grosseira, mas ilustra o tanto que o país foi contaminado pelo preconceito com a política, que veio embutido no período de hegemonia absoluta do neoliberalismo econômico. Os dois governos de FHC nada mais foram do que a expressão máxima desse pensamento: a maioria governista foi amplamente utilizada para neutralizar o seu papel e o do governo na área econômica - o Legislativo era "menos pior" porque cumpria o papel de retirar a política da cena econômica. As chamadas reformas estruturais foram, na verdade, a desconstitucionalização do poder de regular do Estado. O primeiro mandato de Lula seguiu na mesma linha, embora sem maiorias. No último ano, a revelação foi a de que, independente do grau de adesão à máxima de que, quanto menos Estado, melhor, o mercado também tem as suas preferências políticas e partidárias. O mercado renega a política, mas milita na política durante todo o tempo.

O fim da lua-de-mel com os mercados e com as elites econômicas trouxe de volta a política à democracia brasileira - a política transparente, sem disfarces. Com todos os seus defeitos: os partidos são frágeis; as eleições são movidas a interesses privados, já que dependem de altos financiamentos que vêm de grupos com poder econômico; existem obstruções sérias de representação de setores sociais. Mas essa é a política que temos - e dela o país deve partir para construir uma sólida democracia, amadurecer seus partidos e desenvolver mecanismos que dêem eficiência à representação política.

A democracia, por mais imperfeita que seja, é mais sábia do que o mercado.

Publicada em Luis Nassif Online

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto de Nassif?? Vixi!! Não vou ler, mas só de bater o olho já vi alguns FHC escritos... hehe!!

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Comendo no prato em que cuspiram

As regras de leilões de 3G e os altos ágios foram os mesmos de há dez
anos, só que desta vez não houve denúncias

ESCREVO hoje minha última coluna de 2007. Peço ao meu leitor que me
permita um desabafo, colocando para fora um sentimento que me
acompanhou solitário neste ano que agora termina. A gota d'água que
fez transbordar minha indignação foi o resultado do leilão de licenças
para explorar a chamada terceira geração da telefonia celular. Um
sucesso incrível, com uma disputa acirrada entre as empresas privadas
que já operam no Brasil. A intensa disputa levou a ágios expressivos
em relação ao preço mínimo fixado pela Anatel (Agência Nacional de
Telecomunicações) e rendeu quase R$ 6 bilhões para o Tesouro
Nacional. Lula não perdeu tempo para se pavonear desse sucesso de seu governo.
A exploração do serviço celular nos moldes mais avançados da
tecnologia disponível -chamada de 3G- abre um período de
significativos investimentos na área das telecomunicações. A criação
de novos serviços e o desenvolvimento de produtos mais sofisticados
abrem um novo espaço para que o governo arrecade mais impostos e para
que os brasileiros encontrem novas possibilidades de emprego em
setores de altos salários. A sociedade como um todo vai ganhar com
essa nova fronteira econômica e tecnológica que se abre diante de nós.
As regras dos leilões dos celulares 3G seguiram os padrões
estabelecidos em 1997 e 1998 pelo governo Fernando Henrique Cardoso e
seu ministro Sérgio Motta. Exploração privada de freqüências de
telecomunicações, obedecendo as cláusulas pétreas da concorrência e da
universalização dos serviços. Nenhuma mudança em relação ao roteiro
que presidiu a privatização do monopólio estatal da antiga Telebrás.
Inclusive o mecanismo de colocar em uma mesma licença regiões mais
pobres e mais ricas é o mesmo usado dez anos antes.
A única diferença de agora é que não ocorreram as denúncias de entrega
de serviços públicos à sanha dos interesses privados. Também estiveram
ausentes as milhares de ações populares e civis, patrocinadas por
sindicatos e líderes de movimentos sociais ligados ao PT, contra a
"entrega do patrimônio público".
Até a grande mentira que ainda é repetida hoje sobre os preços de
banana está embutida nos valores pagos pelas concessionárias privadas
agora. Os ágios elevados seriam -na linguagem de uma década atrás- uma
prova de que os preços mínimos estabelecidos eram baixos demais.
Uma observação que precisa ser lembrada aqui é que nos leilões de
agora o Brasil já tem um mercado de celulares conhecido e representado
por mais de 135 milhões de terminais em operação. Em 1997 e 1998,
quando a privatização foi realizada, os celulares eram apenas símbolos
caríssimos de status e o potencial desse mercado ainda era uma grande
incógnita. Com a passagem de um monopólio estatal para um sistema com
intensa competição e regras draconianas de universalização forçada,
introduzia-se uma incerteza muito grande para que os interessados
pudessem avaliar os preços a serem pagos nos leilões. Mesmo assim,
ocorreram ágios expressivos e intensa disputa pelas 12 empresas
privatizadas.
A privatização da Telebrás, demonizada até hoje na oratória petista,
foi a origem do sucesso desse grande programa de modernização do nosso
setor de telecomunicações de massa. A entrada em serviço, agora no
governo Lula, de um novo padrão tecnológico, é apenas mais uma etapa
dessa caminhada corajosa iniciada dez anos atrás.

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS , 64, engenheiro e economista, é
economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e
ministro das Comunicações (governo FHC).